Chegamos ao terceiro relato da série Diários da Pandemia. E hoje a Júlia nos conta como está sendo o combate ao coronavírus na Argentina, mais especificamente na capital. O país, que já vive uma crise econômica que vem se arrastando nos últimos anos, chegou a relaxar as medidas da quarentena. Mas está precisando voltar atrás após os casos de infecção pelo vírus dispararem.
O foco da pandemia na Argentina continua sendo a capital Buenos Aires e sua área metropolitana, onde vivem 14 milhões de pessoas e estão concentrados 93,5% de todos os novos positivos. O interior do país vive outro cenário, onde quase não se registram casos positivos e as restrições de movimento são mínimas. O relato da Júlia é sobre sua experiência em Buenos Aires.
Quem é a Júlia
Meu nome é Julia, tenho 33 anos, sou médica veterinária e atualmente faço faculdade de Medicina em Buenos Aires, na Argentina.
Moro na capital argentina há 4 anos. Vim para estudar e hoje formei uma família aqui. Vivo com meu namorado Diego e minha filhota Beatriz, de 10 meses.
Quarentena na Argentina
No dia 20/03 o presidente Alberto Fernández decretou quarentena obrigatória na Argentina. Sim, de cara começamos com o temido lockdown. Naquele momento tínhamos 128 casos confirmados e 3 mortes no país. Fernández já havia pedido quarentena voluntária uns dias antes, mas não teve muito efeito, as pessoas não respeitaram.
Foi quando decidiu-se que a partir do dia 20 haveria punição a quem desrespeitasse a nova norma. O anúncio presidencial dizia: “Deberán someterse al aislamiento social preventivo y obligatorio. Eso quiere decir que, a partir de ese momento, nadie puede moverse de su residencia. Todos tienen que quedarse en sus casas”.
Fecharam os comércios, suspenderam as aulas, fecharam as fronteiras, ninguém entra, ninguém sai. O governo argentino tem sido bem rigoroso na conduta do isolamento.
Como tem sido na prática
No meu prédio está desde então proibido receber visitas, só entra morador. Faz pouco tempo começou a valer um certificado de circulação. Mas só tem direito quem trabalha em 24 tipos de serviços considerados essenciais (serviço de saúde, cuidador de incapaz, menores, idosos, servidor público, entre outros).
Eu não trabalho nessas áreas, então sigo “presa” em casa há mais de 100 dias. Recentemente consegui, depois de quase um mês tentando, o certificado que permite à minha babá vir me ajudar com a Beatriz, pois assim eu poderia estudar (estou tendo aulas online). As aulas presenciais ainda estão suspensas em todos os níveis educacionais. Ela dorme na minha casa de segunda a sexta para não se arriscar diariamente nos transportes públicos.
Aqui em Buenos Aires tampouco está permitido mais de duas pessoas dentro de lojas e há filas com faixas amarelas no chão para limitar a distância entre os clientes. Para ir ao banco, por exemplo, é necessário agendar um horário pela internet. Já os planos de saúde não marcam nenhuma consulta que não seja emergencial – e por isso minha filha não tem ido ao pediatra. Estou sem atendimento médico para ela há quatro meses.
Tentativa de flexibilização da quarentena em Buenos Aires
Depois de dois meses de lockdown, em meados de Junho liberaram um dos pais a sair com o filho e andar uma distância de até 500m da sua casa, mas apenas nos fins de semana. O controle é feito de acordo com o último número do seu documento, par ou ímpar, e odia do mês. Por exemplo, meu documento termina com 0 (que é par), então só posso sair no sábado ou domingo que seja dia par. O documento do Diego, meu namorado, termina em número ímpar, então ele só pode sair com ela no sábado ou domingo que seja dia ímpar. Nunca podemos sair os dois com ela.
Outra novidade é que recentemente começou a ser permitido encontro de até 10 pessoas em casa. Apesar da regra valer apenas para reunir familiares, não há essa fiscalização. Não sabemos por quanto tempo será permitido esse tipo de encontro.
Esse mês o governo também liberou fazer atividade física ao ar livre diariamente de 20h às 8h (vocês não imaginam o frio que já está fazendo). Os argentinos ficaram tão empolgados que virou tipo uma aglomeração de show.
Veja as fotos do primeiro dia de permissão para atividades ao ar livre em Buenos Aires
Voltando à estaca zero
Porém as aglomerações levaram a um aumento exponencial dos casos de infectados e o governo precisou mudar de estratégia mais uma vez. O que significa que Buenos Aires voltará ao estágio 1 da quarentena. Portanto, a partir de amanhã (01/07, dia do meu aniversário) voltará a ser proibido sair às ruas para fazer atividades físicas, assim como todo o comércio voltará a ser fechado e o acesso a transportes públicos será limitado. Essas regras seguirão válidas pelo menos até 17/07.
As fronteiras da Argentina seguem fechadas. Alguns voos e ônibus extraordinários estão sendo operados para levar estrangeiros que estão aqui pra casa. Para isso, tem que se cadastrar no site do consulado, explicar sua situação, e assim obter a liberação para voltar ao país de origem.
Os efeitos do isolamento na Argentina
Teve um dia que estava sozinha em casa, a babá ainda não tinha autorização para vir, e precisei descer na portaria para pegar uma comida que pedi pelo aplicativo. Como estava sozinha, levei a Beatriz comigo. Nesse dia me dei conta da loucura que estamos vivendo. Beatriz estava com quase 8 meses. Minha pequena, que sempre cumprimentava todo mundo com um sorriso largo, teve um ataque de pânico ao ver o porteiro. Ela também estava há dois meses trancada no apartamento sem contato social com ninguém.
Depois disso comecei a descer com ela ao menos na portaria, para aos poucos ela voltar a se acostumar com a presença de outras pessoas. O que mais me preocupa da quarentena é o isolamento social que ela está tendo. Espero que não a afete futuramente.
Coronavírus hoje na Argentina
Hoje, dia 30/06, a Argentina tem 62.255 casos confirmados de Covid-19, dos quais 21.125 se recuperaram, e 1.280 mortes por Covid-19. Enquanto os casos de coronavírus pouco crescem no restante da Argentina, como falei no início desse artigo, na Área Metropolitana de Buenos Aires a curva sobe há duas semanas sem interrupção.
Dos 2.606 positivos registrados na última quinta-feira, 2.424 foram detectados na região. O temor das autoridades é que se a fase mais rígida da quarentena não for levada a sério, bastarão três semanas para que o sistema de saúde da área, que hoje está com 54% de sua capacidade, colapse.
Leia mais sobre o Covid-19 na Argentina nesse excelente artigo do jornal El Pais