Esses foram definitivamente meus trajetos preferidos até agora, os dias 5 e 6 do Caminho da Luz, saindo de Tombos e rumo ao lado mineiro do Pico da Bandeira, em Alto Caparaó. Os lugares por onde passei e as pessoas que conheci fizeram a diferença e me trouxeram lembranças que jamais sairão da minha memória. Nosso grupo também aumentou com a chegada de um casal de Belém do Pará e outro de Belo Horizonte, totalizando 18 peregrinos.
E no meio disso tenho muito a agradecer à Rastro de Luz, que organiza esse grupo de peregrinação que estou fazendo e que nos leva a lugares onde só mesmo quem é da região sabe indicar. Vocês sabem que sou uma fãzona de viajar sozinha e por conta própria. Mas preciso reconhecer que, sem a agência, talvez não teria conhecido a querida Dona Cilene nem experimentado a “pele de angu frita” que ela faz, não teria provado o doce de leite Chup-Leite quentinho e feito na hora direto dentro da fábrica, não teria me hospedado na aconchegante casa da Cristina, do Sandro, do Simão Pedro e do Emanuel, não teria participado da roda de viola na casa da Luciana, não teria vivido esses momentos que não têm preço na vida.
Por isso hoje conto como foram meus quinto e sexto dias do Caminho da Luz com um pouquinho de aperto no coração. Quando passa da metade e você se dá conta de que está para acabar a qualquer momento, se vê desejando caminhar mais 1.000 km só para poder seguir compartilhando dessas experiências que levamos conosco para sempre. Espero conseguir passar através de palavras um pouquinho do que está sendo o Caminho da Luz para nós.
Leia aqui também como foram os:
DIA 5 do Caminho da Luz
Esse tipo de caminhada longa às vezes mexe um pouco com a gente. Nos vemos sendo desafiados diariamente e às vezes indo a extremos que cansam o corpo e a mente. Algumas pessoas reagem ficando mais introspectivas, outras ficam mais intolerantes e até agressivas, algumas ficam mais sensíveis e emotivas, e por aí vai.
Hoje uma amiga que fiz aqui estava muito emocionada antes de partirmos para encarar os 25 km que nos levariam de Carangola a Caiana. Passei pela porta do quarto dela ao perceber que ela estava demorando para descer e, ao vê-la com os olhos marejados, a abracei e ela me contou que naquele dia não queria caminhar. Nessas horas precisamos oferecer nosso ombro, mas também nossos ouvidos e melhores palavras de incentivo para não deixar o outro desistir.
Com um pouco de conversa, a convenci de que devíamos pegar a estrada juntas. E prometi me afastar se em algum momento ela preferisse caminhar sozinha. E nesse dia não fui apenas eu que a ajudei, mas ela também foi meu estímulo para não perceber os muitos quilômetros que iríamos encarar a partir dali. Conversamos muito, fizemos confissões de vida, contamos sobre relacionamentos, sobre decepções, compartilhamos planos.
Tudo isso caminhando por uma linda trilha que passava por uma antiga linha férrea, hoje tomada por muito verde e com algumas casas abandonadas pelo caminho que rendiam ótimas fotos. Até mesmo a chuva fininha que caiu foi bem recebida. Eu andava de olhos fechados e com o rosto virado para o céu deixando aqueles respingos desanuviarem todos os meus pensamentos e agradecendo em silêncio por cada minuto vivido aqui.
O início do trajeto de hoje era puxado, com uma subida muito íngreme e cansativa. Mas depois, quando chegávamos à trilha fechada, o silêncio só era cortado pelas nossas conversas e gargalhadas. O dia ficou leve, e a gente vai entendendo por que essas peregrinações funcionam quase como uma extensa sessão de terapia. Até mesmo os meus sonhos estão ficando mais intensos essa semana. Tenho sonhado com gente que não vejo há anos e fazendo um misto de realidade com devaneios.
Durante nossas caminhadas, a equipe da Rastro de Luz monta uma barraca com lanches na metade do percurso para podermos descansar e repor as energias. Só que nesse dia, como estávamos em um percurso fechado para a passagem de carros, nossa barraca somente foi montada no km 17 do trajeto. Chegamos lá famintas. E os banquinhos nos esperando na sombra foram um afago na alma.
Ao fim da caminhada, chegamos a Caiana. O sereno continuava. Mas foi apenas o tempo para tomar um banho no Hotel Cristal, onde nos hospedamos, e ir para a rua tomar uma cervejinha no Bar do Vitorino. E uma cachacinha também, pois estava esfriando e precisávamos manter o corpo aquecido, mesmo quando parado.
Muitas risadas depois, fomos jantar no nosso próprio hotel, que, aliás, era ótimo. E nesse dia eu dormi cedo já esperando pelos sonhos malucos que iriam vir.
DIA 6 do Caminho da Luz
Hoje era dia de encarar o trajeto mais longo do Caminho da Luz: 27 km até chegar na Galileia, passando por Espera Feliz. Mas a expectativa sobre nosso próximo destino era altíssima. Nossos guias haviam contado que era provável que a Galileia nos encantasse mais até do que Catuné, onde ficamos no primeiro dia da caminhada.
Mas eles também haviam dito que esse percurso seria chatinho, pois era mais reto, sem muito morro, e por isso tenderia a ser mais entendiante. Não sei para as outras pessoas, mas esse foi disparado meu dia preferido, e eu mal sabia o que nos esperava ao final dele.
Um detalhe especial desse trajeto é que uma parte da galera da frente se juntou a nós, da turma do fundão e que sempre chega atrasada. Se formou um grupo grande de umas oito mulheres e foi risada e “causo” do início ao fim. E as novas integrantes acabaram confessando uma coisa: adoraram ser parte do grupo das atrasadas. Daquelas que curtem mais o caminho. Que tiram mais fotos. Que observam mais detalhes ao redor. Que visitam lugares e conversam com pessoas pelo caminho.
E nesse dia fizemos uma visita mais que especial. Além dos vários vilarejos que estavam em nosso caminho e da cidade de Espera Feliz, maior e com boa infra estrutura, entramos numa chácara lindíssima com uma pequena fábrica de doce de leite nos fundos. O lugar já era um encanto por si só, com palmeiras enormes, um jardim lindo, um Golden retriever fazendo pose na entrada, um pomar. Seguimos direto até lá atrás e pudemos acompanhar a fábrica a todo vapor. E o melhor: experimentar aquele doce de leite ainda quentinho de tão fresco. Ah, não, teve outra coisa melhor ainda: compramos pacotes daquele doce de leite por preços inacreditáveis!
Ih, não, teve ainda mais coisa tão boa quanto nos aguardando. Quando descíamos para ir embora, encontramos os proprietários que estavam no jardim e nos chamaram para experimentar um tal de limão doce. Sim, eu também fiz essa cara de “coméquiéisso, é limão com açúcar?”. Eles foram direto na árvore, arrancaram uma fruta com cara de laranja, entregaram na minha mão junto com uma faca pra partir e ficaram vigiando enquanto descobríamos aquele mundo novo. Um mundo onde limões recém arrancados do pé não ardem na boca, adoçam o paladar e nem mancham a mão com o sol.
Isso tudo só podia ser um sonho bom.
E como essa vida é feita de despedidas, demos mais um adeus em direção ao lugar que roubaria meu coração em todo o Caminho da Luz.
Quando chegamos em Galileia, uma plaquinha em papel com meu nome escrito nela indicava a direção do meu lar por uma noite. Quem me recebeu já na porta foi o Simão Pedro, um dos filhos da Cristina e do Sandro, e irmão do Emanuel.
Fui recepcionada com um abraço numa casa tão linda em meio ao nada que somente um quadro pintado pela própria Cristina poderia retratar (ela é professora de pintura e as lindas artes dela enfeitam sua aconchegante casa).
Me hospedei lá com o Gilson (sim! aquele que quebrou o dente!) e a Luma, a filha dele e a essa altura já uma grande amiga. Também dividindo espaço com os cachorrinhos da casa.
Nesse momento estou pensando como eu poderia descrever como foi nossa noite lá. De repente pular para a parte em que todo o nosso grupo com 18 pessoas se reuniu num cômodo da casa vizinha, somando mais de 30 pessoas junto com a família da Cristina em volta de uma roda de viola…De repente dessa maneira faça mais sentido e te ajude a ilustrar esse momento ímpar no pensamento.
Em Galileia quase todos os moradores são parentes. E se somar a família da Cristina, com os irmãos e sobrinhos, dá aí mais de 70 pessoas. Essas festas são mais comuns por lá do que você imagina. Eles organizam festas a fantasia, forrós, festas na Igreja, rodas de viola. E nós tivemos o prazer de participar disso por uma noite na vida deles.
Teve muito sertanejo de raiz, mas também teve Chico Buarque, Los Hermanos… E até uma oração. E se alguém a essa hora ainda não tinha se debulhado em lágrimas, não dava mais para segurar. Cantamos juntos, de mãos dadas e de olhos fechados, uma Ave Maria com a incrível voz da Cristina sobressaindo. Agradecemos por aquele momento, pedimos forças pelos quilômetros que estavam por vir, celebramos a união de pessoas com energias tão boas. A paz que pairou naquela sala naquele momento ultrapassou qualquer religião individual de quem estava ali. Alguém fungou por ali, eu enxuguei umas lágrimas daqui. E quando abrimos os olhos recomeçamos toda a festa de novo.
Os comentários depois é de que dava vontade de ser parte daquela família. Num contraste tão grande com a vida que levamos, no caos do trânsito, da violência, dos compromissos da rotina do dia-a-dia, do relógio sempre lembrando que estamos atrasados, do elevador que, putaqueopariu, foi parar lá no vigésimo quinto andar, do sinal amarelo que virou vermelho antes de eu conseguir avançar, do “vamos marcar qualquer dia” e não marcar nunca, do “favor responder ASAP” na tela do celular, da bateria do mesmo celular que não dura nem até a hora do almoço que só dura meia hora porque, socorro, tô atolada de coisa pra fazer…
No contraste daquela noite em que voltamos para casa empunhando nossas lanternas porque não havia nem poste na rua, que era apenas iluminada por uma infinidade de estrelas. Daquela noite em que o fim da roda de violão deu lugar ao silêncio que deu lugar ao sono tranquilo que deu lugar a um buraco de saudade. Saudade da roda de viola que já existiu também na minha casa reunindo toda a família. Já existiu muitas vezes, já foi motivo de muita alegria, e que hoje não sei se existirá mais, ao menos não da forma como era antes.
Aquela noite teve um significado muito maior para mim e talvez a Cristina e a família dela nunca saibam disso, nem mesmo o abraço que eu dei neles agradecendo conseguiria demonstrar tamanha gratidão. A casa dela, naquela noite, teve um gostinho da minha casa. E deu uma tristeza em pensar que faltavam apenas mais dois dias para terminarmos de percorrer o iluminado Caminho da Luz.
Dicas:
- Fizemos o trajeto Carangola x Alto Caparaó com pernoites em Carangola x Caiana x Galileia x Alto Caparaó, mas esse trajeto também pode ser feito com pernoite apenas em Carangola x Espera Feliz x Alto Caparaó.
- Se você quiser pernoitar em Espera Feliz, fique tranquilo que lá encontrará opções de hospedagem e de onde comer, já que é um lugar com maior infra estrutura.
- Somente é possível pernoitar em Galileia se você viajar com a Rastro de Luz, pois lá não há hotel ou pousada e nós ficamos em casas de família – e eles não recebem peregrinos individualmente, apenas através da agência.
- Mas se você apenas estiver passando por lá a caminho de Alto Caparaó e precisar de água, de ir ao banheiro ou mesmo se estiver com fome, não hesite em parar em uma das casas e pedir ajuda. Tenho certeza que eles terão o maior prazer em te ajudar e você poderá conhecer pessoas maravilhosas que farão a diferença no seu caminho.
- A outra opção de percurso saindo de Espera Feliz, sem ser passando por Galileia, é passando por Caparaó, onde há mais opções de lanchonetes, restaurantes e hospedagem.
Leia como foram os Dias 7 e 8 do Caminho da Luz – com a esperada subida ao Pico da Bandeira!
E para ler mais sobre o que é o Caminho da Luz e como se preparar para ele, clique aqui!